A CONCEPÇÃO VIRGINAL NA VISÃO DO AUTOR
Por: Ronaldo Gomes
O evangelista Mateus, ao contrário de seu antecessor Marcos, narra a genealogia e nascimento de Jesus, e sua concepção miraculosa:
“Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Que estando Maria, sua mãe, desposada com José, antes de se ajuntarem, achou-se ter concebido do Espírito Santo. Então José, seu marido, como era justo, e a não queria infamar, intentou deixá-la secretamente. E, projetando ele isto, eis que em sonho lhe apareceu um anjo do Senhor, dizendo: José, filho de Davi, não temas receber a Maria, tua mulher, porque o que nela está gerado é do Espírito Santo;” Mateus 1:18-20
E isso tem gerado uma série de problemas históricos para a igreja:
- O messias prometido deveria ser descendente de Davi e da tribo de Judá, e o novo testamento da a entender que Maria era da tribo de Levi:
“Existiu, no tempo de Herodes, rei da Judéia, um sacerdote chamado Zacarias, da ordem de Abias, e cuja mulher era das filhas de Arão; e o seu nome era Isabel” Lucas 1:5
“E eis que também Isabel, tua prima, concebeu um filho em sua velhice; e é este o sexto mês para aquela que era chamada estéril;” Lucas 1:36
“E Maria ficou com ela quase três meses, e depois voltou para sua casa” Lucas 1:56
O proto evangelho de Tiago confirma que Maria foi criada no templo, o que só era permitido a tribo de levi:
Entretanto, os meses iam-se passando para a menina. Ao fazer dois anos, disse Joaquim a Ana:
— Levemo-la ao templo do Senhor para cumprir a promessa que fizemos, para que Senhor não a reclame e nossa oferenda se torne inaceitável a seus olhos.
Ana respondeu:
— Esperamos, todavia, até que complete três anos, para que a menina não tenha saudades de nós.
Joaquim respondeu:
— Esperaremos.
Ao chegar aos três anos, disse Joaquim:
— Chama as donzelas hebréias que não têm mancha e que tomem, duas a duas, uma candeia acesa e a acompanhem, para que a menina não olhe para trás e seu coração seja
cativado por alguma coisa fora do templo de Deus.
Assim fizeram enquanto iam subindo ao templo de Deus. Lá recebeu-a o sacerdote, o qual, depois de tê-la beijado, abençoou-a e exclamou:
— O Senhor engrandeceu teu nome diante de todas as gerações, pois que, no final dos tempos, manifestará em ti sua redenção aos filhos de Israel.
Fê-la sentar-se no terceiro degrau do altar. O Senhor derramou graças sobre a menina, que dançou cativando toda a casa de Israel.
Saíram, então, seus pais, cheios de admiração, louvando ao Senhor Deus porque a menina não havia olhado para trás. Maria permaneceu no templo como uma pombinha,
recebendo alimento pelas mãos de um anjo.
- A tribo era definida pelo pai e o espírito santo não tem tribo, logo, não teria como Jesus ser o messias prometido:
“Porque brotará um rebento do tronco de Jessé, e das suas raízes (נֵצֶר) um renovo frutificará” Isaías 11:1
- Mateus traça toda uma genealogia ligando Jesus a José, o que seria inútil se ele não fosse seu pai biológico.
- Marcos que é o evangelho mais antigo não relatou este fato miraculoso.
- O codex sinaíticus traz uma variante que da a entender que José gerou Jesus:
"Jose, a quem foi prometida Maria a Virgem, gerou a Jesus, que é chamado o Cristo"
- Lucas se refere a José como pai de Jesus:
“E, regressando eles, terminados aqueles dias, ficou o menino Jesus em Jerusalém, e não o soube seu pai e nem sua mãe” Lucas 2:43
- Paulo que escreveu antes dos evangelhos menciona que Jesus era descendente de David segundo a carne:
“Acerca de seu Filho, que nasceu da descendência de Davi segundo a carne, Declarado Filho de Deus em poder, segundo o Espírito de santificação, pela ressurreição dentre os mortos, Jesus Cristo, nosso Senhor,” Romanos 1:3,4
- O próprio Jesus segundo o apocalipse diz ser descendente biológico de David:
Eu, Jesus, enviei o meu anjo, para vos testificar estas coisas nas igrejas. Eu sou a raiz e a geração (γένος) de Davi, a resplandecente estrela da manhã. Apocalipse 22:16
- Porque que alguém que foi supostamente gerado pelo espírito santo teve que receber o espírito santo para iniciar seu ministério?
“E Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto;” Lucas 4:1
“E o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea, como pomba; e ouviu-se uma voz do céu, que dizia: Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo” Lucas 3:22
Fora que jesus só recebe todo poder após a ressurreição:
“E, chegando-se Jesus, falou-lhes, dizendo: É-me dado todo o poder no céu e na terra” Mateus 28:18
Então porque Mateus diria que Jesus nasceu de uma virgem? Será que o autor disse mesmo isso?
Como eu sempre digo, a bíblia não foi escrita em Português e nem em 2020. Então nós temos que tentar entender o que o autor quis dizer de acordo com a sua época e seu idioma original.
O novo testamento foi escrito em Grego mas por autores que não tinham esse idioma como nativo. Então de um idioma para o outro utiliza-se equivalentes que expressem o mais próximo o possível o sentido original.
Nesse caso é muito fácil ver qual foi o equivalente utilizado por Mateus, porque ele atribui o nascimento de Jesus ao cumprimento de uma profecia de Isaías:
“Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor, pelo profeta, que diz; Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, E chamá-lo-ão pelo nome de EMANUEL, Que traduzido é: Deus conosco” Mateus 1:22,23
E o profeta Isaías utilizou o termo jovem e não virgem:
“Portanto o mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a jovem conceberá, e dará à luz um filho, e chamará o seu nome Emanuel” Isaías 7:14
Mas porque Mateus utilizou um equivalente que expressaria virgindade?
Porque na concepção do autor o nascimento de Jesus foi miraculoso mas não necessariamente sem relação sexual.
Para entendermos isso teremos que entender alguns aspectos do judaísmo helênico do primeiro século.
O autor de Mateus provavelmente foi um judeu helênico. E vendo os escritos de outro judeu helênico, Filo de Alexandria, vemos paralelos.
No tanach, vemos vários exemplos de nascimentos miraculosos, desde o patriarca Isaque que foi gerado por Sara que já era idosa e estéril:
E Sarai foi estéril, não tinha filhos. Gênesis 11:30
Mas na concepção judaica, um fato sobrenatural, isto é, com uma intervenção divina, não é o mesmo que ir contra as leis da natureza. Isto é, Deus pode intervir para que uma mulher estéril engravide, mas dentro da ordem natural, ou seja, do próprio marido, como foi o caso de Sarai:
“E disseram-lhe: Onde está Sara, tua mulher? E ele disse: Ei-la aí na tenda. E disse: Certamente tornarei a ti por este tempo da vida; e eis que Sara tua mulher terá um filho. E Sara escutava à porta da tenda, que estava atrás dele. E eram Abraão e Sara já velhos, e adiantados em idade; já a Sara havia cessado o costume das mulheres. Assim, pois, riu-se Sara consigo, dizendo: Terei ainda deleite depois de haver envelhecido, sendo também o meu senhor já velho? E disse o Senhor a Abraão: Por que se riu Sara, dizendo: Na verdade darei eu à luz ainda, havendo já envelhecido? Haveria coisa alguma difícil ao Senhor? Ao tempo determinado tornarei a ti por este tempo da vida, e Sara terá um filho” Gênesis 18:9-14
Ou seja, foi uma concepção miraculosa no sentido de Sarai conseguir engravidar mesmo em idade avançada e estéril, mas foi do próprio marido.
E Filo de Alexandria, um judeu helênico do primeiro século disse que Sarai se tornou virgem por causa disso. Ou seja, na concepção de Filo, uma intervenção divina, santifica tudo ao redor, logo, a mulher que recebe uma graça como essa é como uma mulher que voltou a ser virgem:
“Mas, quando Deus começa a associar-se com a alma, ele faz o que era anteriormente mulher agora novamente virgem [...]portanto, ele não vai conversar com Sara de todos os hábitos, como outras mulheres tem, tê-la deixado, e até que ela tenha voltado para a classe de virgens puras”
Adiante Filo diz:
“Agora, das quatro virtudes, alguns são sempre virgens, e algumas tendo sido mulheres, tornam-se mudadas para virgens como fez Sara: “Porque tinha deixado de estar com ela a maneira das mulheres”, quando ela começou a conceber seu descendente feliz Isaque. Mas aquilo que é sempre uma virgem é aquilo que Moisés diz: “Ora, nenhum homem sequer a conhece”
Filo está se referindo ao fato da concepção de Isaque ter tido uma intervenção divina e não apenas a participação paterna. E mesmo tendo tido relações sexuais, ele compara essa mulher a uma virgem imaculada. Outro exemplo:
“E era Isaque da idade de quarenta anos, quando tomou por mulher a Rebeca, filha de Betuel, arameu de Padã-Arã, irmã de Labão, arameu. E Isaque orou insistentemente ao Senhor por sua mulher, porquanto era estéril; e o Senhor ouviu as suas orações, e Rebeca sua mulher concebeu” Gênesis 25:20,21
Talvez o autor tenha usado este termo Grego para denotar pureza e intervenção divina, pois sabia que os Gregos entenderiam.
Mas Maria não era estéril, logo, o que teria de semelhante ou miraculoso sua concepção?
Segundo os evangelistas, Maria era uma jovem mulher. Segundo a Mishná da escola de Shamai que se uma garota se casa mas ainda não menstruou, ela tem que conceder quatro noites ao marido e se ela derramar sangue, esse sangue não é considerado de menstruação mas da relação sexual. Então esse sangue era considerado puro.
Logo, a garota podia engravidar antes da sua primeira menstruação, ou seja, antes mesmo da sua ovulução. Então a virgindade nesse caso estaria mais relacionada a primeira relação sexual e menstruação do que ao himém. Os essênios por exemplo, só permitiam casamento após três menstruações para ter certeza de que a mulher podia engravidar.
Então não era comum uma mulher engravidar em sua primeira relação sexual, ainda mais se fosse nova. Então esse seria o milagre e não uma concepção sem relações sexuais.
Então vamos ver a anunciação segundo Lucas:
“Disse-lhe, então, o anjo: Maria, não temas, porque achaste graça diante de Deus. E eis que em teu ventre conceberás e darás à luz um filho, e pôr-lhe-ás o nome de Jesus. Este será grande, e será chamado filho do Altíssimo; e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; E reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim. E disse Maria ao anjo: Como se fará isto, visto que não conheço homem algum? E, respondendo o anjo, disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus. Lucas 1:30-35
O anjo diz a Maria que ela geraria um filho, mas não diz que ela engravidaria do espírito santo, mas que seria abençoada por ele. O termo filho de Deus aplicado por Lucas demonstra isso, porque quando uma pessoa gerava um filho sendo estéril ou idosa ou por alguma intervenção divina qualquer, o filho era chamado de filho de Deus, porque foi graças a Deus que esta concepção aconteceu.
Mas porque José tentou repudia-la?
Porque Maria pode ter engravidado antes da ovulação:
Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Que estando Maria, sua mãe, desposada com José, antes de se ajuntarem, achou-se ter concebido do Espírito Santo. Mateus 1:18
Mateus começa dizendo que Maria era desposada com José, isto é, eles já tinham um compromisso, um casamento, mas ainda não moravam juntos:
Na época talmúdica o casamento era feito em duas etapas. A primeira era a promessa ou "noivado" - em hebraico, erussin ou kidushin. Era de fato um compromisso moral, que podia ser revogado por uma das partes. Possuía praticamente a validade do matrimônio, mas não concedia direitos aos envolvidos. Era também chamado de kidushin (consagração ou dedicação) pois era, de fato, quando a noiva era "prometida" ao noivo.
No ato do noivado, o homem entregava à futura esposa um presente cujo valor devia ser maior do que uma moeda. A partir do século VII o presente foi substituído por um anel sem pedras preciosas. Este era colocado pelo noivo no dedo indicador direito da noiva, depois da prece recitada por um oficiante, dizendo: "Harei at mekudeshet li, betabaat zu kedat Moshe ve-Israel" (Eis que me és consagrada por esse anel, segundo a lei de Moisés e Israel). Ao colocar o anel no dedo da noiva, o rapaz efetivava seu vínculo com ela.
Algum tempo após o noivado, a cerimônia de casamento, propriamente dita, em hebraico nissuin, era oficiada sob a chupá, na presença de duas testemunhas competentes com a recitação das sete bênçãos tradicionais - Sheva Brachot. A cerimônia era realizada sob a chupá, o pálio nupcial, simbolizando o lar do novo casal e "cobrindo" ou protegendo-o nesta fase abençoada e sagrada de sua vida. Este "lar" simbólico, a chupá, é o que permite que a cerimônia seja realizada em qualquer lugar.
Repúdio segundo a lei:
“Quando um homem tomar uma mulher e tiver consumado o matrimônio, então será que, se não achar graça em seus olhos, por nela encontrar algo inconveniente, far-lhe-á uma carta de repúdio, e lha dará na sua mão, e a despedirá da sua casa” Deuteronômio 24:1
Então o repudio podia ser feito mesmo após consumado o casamento. Então nada impede que José e Maria tenham tido esse período e ela engravidou antes do período menstrual, pela ação do espírito santo. E isto pode ter sido inconveniente para José.
“Que estando Maria, sua mãe, desposada com José, antes de se ajuntarem, achou-se ter concebido do Espírito Santo. Então José, seu marido, como era justo, e a não queria infamar, intentou deixá-la secretamente. Mateus 1:18,19
Então ser gerado com a ajuda do espírito santo não significa ser gerado pelo espírito santo sem o pai:
“E, projetando ele isto, eis que em sonho lhe apareceu um anjo do Senhor, dizendo: José, filho de Davi, não temas receber a Maria, tua mulher, porque o que nela está gerado é do Espírito Santo;” Mateus 1:20
Então podemos deduzir que Maria era virgem no sentido de ter sido agraciada pelo espírito santo, concebendo ainda muito nova, antes de sua primeira evolução, de acordo com o entendimento da época. Após o novo testamento ter sido interpretado pelos gentios, eles literalizaram o fato, por não estarem familiarizados com a cultura semita da época. Na mentalidade Grega era mais concebível uma concepção literalmente assexuada porque eles já tinham essas concepções:
“Também quando dizemos que o Verbo, primeiro rebento de Deus, nasceu sem relação carnal, isto é, Jesus Cristo, nosso Mestre, e que ele foi crucificado, morreu e, depois de ressuscitado, subiu ao céu, não apresentamos nada de novo se se levam em conta os que chamais de filhos de Zeus. 2 De fato, sabeis bem a quantidade de filhos que os vossos estimados escritores atribuem a Zeus: Hermes, o Verbo intérprete e mestre de todos; Asclépio, que foi médico e que, depois de ter sido fulminado, subiu ao céu; Dioniso, depois que foi esquartejado; Héracles, depois de se atirar ao fogo para fugir dos trabalhos; os Dióscoros, filhos de Leda, Perseu de Dânae e Belerofonte, nascido de homens, sobre o cavalo Pégaso. 3 Para que ainda falar de Ariadne e dos que, semelhante a ela, se diz que são colocados nas estrelas? Passo por alto também vossos imperadores mortos, aos quais tendes sempre como dignos da imortalidade e nos apresentais algum infeliz que jura ter visto César incinerado subir da pira ao céu”
Apologia de Justino XXI
Já na cultura semita não, um nascimento miraculoso era quando Deus intervia de alguma maneira como em uma mulher estéril, idosa ou semelhante, mas sempre utilizando o homem e a mulher.
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