sexta-feira, 12 de junho de 2020

O Rico e o Lázaro


O RICO E O LÁZARO
vídeo: análise critica Lázaro


"Ora, havia um homem rico, e vestia-se de púrpura e de linho1 finíssimo, e vivia todos os dias regalada e esplendidamente. Havia também um certo mendigo, chamado Lázaro2, que jazia cheio de chagas à porta daquele; E desejava alimentar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico; e os próprios cães vinham lamber-lhe as chagas. E aconteceu que o mendigo morreu, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão3; e morreu também o rico, e foi sepultado. E no inferno4, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe Abraão, e Lázaro no seu seio. E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e manda a Lázaro, que molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro somente males; e agora este é consolado e tu atormentado. E, além disso, está posto um grande abismo5 entre nós e vós, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem tampouco os de lá passar para cá. E disse ele: Rogo-te, pois, ó pai, que o mandes à casa de meu pai, Pois tenho cinco irmãos; para que lhes dê testemunho, a fim de que não venham também para este lugar de tormento. Disse-lhe Abraão: Têm Moisés e os profetas; ouçam-nos. E disse ele: Não, pai Abraão; mas, se algum dentre os mortos fosse ter com eles, arrepender-se-iam. Porém, Abraão lhe disse: Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite"
Lucas 16:19-31

1- Púrpura e linho eram vestimentas caras dos Egípcios.
2- Lázaro é na verdade Elazar que significa "Aquele que Deus ajuda" Temos um Elazar bem semelhante em segunda Macabeus:

"Havia um certo homem já de idade avançada e de bela aparência, Eleazar, que se sentava no primeiro lugar entre os doutores da Lei. Queriam coagi-lo a comer carne de porco, abrindo-lhe a boca à força. 19.Mas ele, cuspindo e preferindo morrer com honra a viver na infâmia, 20.caminhou voluntariamente para o instrumento de tortura, como devem caminhar os que têm a coragem de rejeitar o que não é permitido comer por amor à vida.* 21.Os encarregados desse ímpio banquete ritual, já desde muito tempo possuíam relações de amizade com Eleazar. Tomaram-no à parte e rogaram-lhe que fizesse trazer as carnes permitidas, que ele mesmo tivesse preparado, para comê-las como se fossem carnes do sacrifício, conforme tinha ordenado o rei. 22.Desse modo, ele seria preservado da morte, e granjearia sua benevolência em vista da velha amizade. 23.Mas Eleazar, tomando uma nobre resolução, digna de sua idade, da autoridade que lhe conferia sua velhice, do prestígio que lhe outorgavam seus cabelos brancos, da vida íntegra conservada desde a infância e digna sobretudo das sagradas leis estabelecidas por Deus, preferiu ser conduzido à morte. 24.“Não é próprio da nossa idade – respondeu ele – usar de tal fingimento, para não acontecer que muitos jovens suspeitem de que Eleazar, aos noventa anos, tenha passado aos costumes estrangeiros. 25.Eles mesmos, após o meu gesto hipócrita, e por um pouco de vida, se deixariam arrastar por causa de mim, e isso seria para a minha velhice a desonra e a vergonha. 26.E mesmo se eu me livrasse agora dos castigos dos homens, não poderia escapar, nem vivo nem morto, das mãos do Todo-poderoso. 27.Sendo assim, se eu morrer agora, corajosamente, vou mostrar-me digno de minha velhice e terei deixado aos jovens um nobre exemplo de zelo generoso, segundo o qual é preciso dar a vida pelas santas e veneráveis leis.” 28.Ditas essas palavras, dirigiu-se diretamente ao suplício."
II Macabeus, 6 - 18;28

3- Seio de Abrão significa a bolsa acima da cinta, que se faz ao puxar a roupa um pouco para cima. Pode se referir ao cuidado especial (como no caso do amor que uma mãe mostra ao filho que carrega nas dobras do seu vestido sobre o peito) ou ao lugar de honra à mesa ao lado de Abraão. Quando alguém reclina à mesa, sua cabeça ficava aproximadamente ao nível do peito do vizinho (João 13:23)


Nos escritos de Hipólito aparece a descrição do seio de Abraão da seguinte maneira:
Há uma descida nesta região, cuja porta nós acreditamos que está um arcanjo com uma hoste; quando aqueles passam através desta porta, estes são conduzidos para baixo pelos anjos designados sobre as almas. Eles não vão da mesma maneira; os justos são guiados ao lado direito e conduzidos com hinos, cantados pelos anjos designados sobre aquele lugar, em uma região de luz; em que os justos têm morado desde o começo do mundo; não constrangidos por necessidade, mas sempre gozando a expectativa das boas coisas que eles vêem, e felizes na expectativa daquelas novas alegrias que serão peculiares a cada um deles, e considerando aquelas coisas além do que nós temos aqui; lá não é nenhum lugar de trabalho duro, nem calor ardente, nenhum frio congelante, nem existe qualquer espinho; mas o semblante dos pais e do justo, que eles vêem, sempre os sorri, embora eles esperam por esse descanso e vida nova eternal no céu, onde é sucedida por esta região. Esse lugar nós chamamos O Seio de Abraão


4- Submundo Grego para onde iam os mortos.

5- A atestação mais antiga do judaísmo rabínico sobre a imortalidade da alma está em I Enoque Etíope 22. No verso um diz:
 “Desde ali fui a outro lugar, e me foi mostrado no ocidente...”
e o autor afirma que viu ali o lugar separado para os mortos até o juízo, ou seja, o hades. Mas o detalhe interessante é que o hades está situado no “ocidente” ou oeste (concepção egípcia); já no resto do livro o hades está situado debaixo da terra93 (concepção hebraica e grega). Para os egípcios o Oeste ou a região dos mortos eram chamados de “Amentit”. Essa idéia originou-se na mitologia egípcia, pois Amentit era a deusa que personificava o Oeste ou a região dos mortos. Porque, então, a atestação judaica mais antiga sobre imortalidade da alma mencionaria o hades no ocidente e não debaixo da terra? Existiria alguma relação egípcia com o texto de I de Enoque? Sendo o texto lucano bastante parecido ao texto de Enoque, seria possível alguma relação egípcia com a parábola do rico e Lázaro?

Em 1918, Hugo Gressman elaborou uma monografia mencionando um conto popular egípcio preservado no lado reverso de um documento datado do ano 47d.C. (ver anexos). Esse documento demótico data do I século, mas o conto egípcio ali mencionado seria do VI século a.C. Ele propõe a idéia de que essa lenda egípcia deu origem a uma série de contos místicos96 possivelmente muito bem conhecidos nos círculos judaicos do I século. E ele conclui que provavelmente a narrativa do rico e Lázaro, utilizada por Cristo, era um destes contos.
O conto egípcio narra a história, dita verídica por alguns, de Satmi-Kharnois e de seu filho Senosíris. É esta:

"Um dia Satmi viu que levavam um rico para ser sepultado na montanha com honras militares e lamentações. Olhou uma segunda vez e, a seus pés, percebeu um pobre que era transportado para fora de Mênfis, deitado numa esteira, sozinho e sem ninguém do mundo que o acompanhasse. Satmi disse: ‘Pela vida de Osíris, o Senhor de Amentit, seja-me concedido em Amentit ter o que tem os ricos – grande lamentação – e não o que têm os pobres que são levados à montanha sem pompa nem honrarias!’. Senosíris, seu filhinho, lhe disse: ‘Em Amentit, seja feito contigo o que se fez com este pobre homem, e não seja feito contigo em Amentit o que fizeram com este rico’.
(Senosíris mandou seu pai descer em Amentit).
Então, Satmi percebeu um personagem distinto, vestido com roupas de linho fino e que se achava perto do lugar em que Osíris estava, numa posição muito elevada... Senosíris lhe disse: ‘Meu pai Satmi, vês este importante personagem vestido com roupas de linho fino e que se acha perto do lugar em que está Osíris? É aquele pobre homem que viste quando o levavam para fora de Mênfis, sem que ninguém o acompanhasse, e que estava deitado numa esteira! Conduziram-no para o Hades; pesaram suas más obras e seus méritos durante o tempo em que viveu na terra; verificaram que seus méritos eram mais numerosos do que suas más obras. Considerando-se que o período de vida que Tot inclui em sua conta não correspondia a uma soma de felicidade suficiente em comparação ao tempo em que passara na terra, foi ordenado perante Osíris que se transferisse o cortejo fúnebre deste rico, que viste ser levado para fora de Mênfis com honras militares, para o pobre homem, que é este aqui presente, depois de haver ele passado no meio das divindades veneráveis, dos fachos de Socarosíris, perto do lugar em que se acha Osíris. O rico que viste foi conduzido para o Hades; pesaram-se suas más obras e seus méritos; constatou-se que suas más obras eram mais numerosas do que seus méritos aqui na terra; ordenaram que no Jardim de Amendoeiras ele recebesse a sua retribuição, e foi ele que viste com o eixe da porta do Jardim de Amendoeiras enfiado em seu olho, girando dentro deste olho, tanto quando se fecha quanto quando se abre a porta, enquanto de sua boca saem gritos fortíssimos... Quem faz o bem na terra recebe o bem no Jardim de Amendoeiras, mas quem faz o mal recebe o mal

Acredita-se que este relato teria sido trazido para Israel por judeus alexandrinos e se tornou bem popular em Jerusalém99. Logo versões judaicas surgiram e aqui está uma delas. Trata-se de um conto rabínico do devoto e do filho do publicano Ma’yan:
Havia em Ascalon dois devotos: comiam juntos, bebiam juntos, dedicavam-se juntos a leitura da Torá. Um deles morreu e não lhe prestaram a mínima homenagem. O filho do publicano Ma’yan morreu e toda a cidade acorreu para prestar-lhe homenagem. Então o devoto ainda vivo começou a se lamentar dizendo: “Que desgraça! Aos inimigos de Israel (= os maus israelitas) nada acontece (de mau)”. Em sonho ele teve uma visão e lhe disseram: “Não desprezes os filhos do teu Senhor (=os israelitas)! O primeiro (= o devoto) cometeu um pecado, e foi assim que escapou (=sua falta foi expiada por seu enterro solitário); o segundo praticou uma boa obra, e foi assim que escapou (= teve sua recompensa no seu enterro magnífico)”. Que pecado cometera tal devoto? Não fora uma falta grave, mas certa vez colocara os “tefilins” da cabeça antes de colocar os das mãos. E que boa obra fizera o filho do publicano Ma’yan? Certamente, não se tratava de uma boa obra verdadeira, mas uma vez preparara um almoço para os conselheiros (da cidade), e estes não vieram à refeição. Então disse ele: “Os pobres podem comê-lo para que não se perca...”. Alguns dias depois, este devoto viu em sonhos o devoto, que fora seu companheiro, num jardim, à sombra perto de uma fonte. Viu também o filho do publicano Ma’yan que estirava a língua ás margens de um rio: queria alcançar a água e não conseguia.

Histórias como essas eram trazidas por pessoas que afirmavam ter visões ou até mesmo visitado o mundo dos espíritos a fim de informar sobre as condições ali existentes. Um outro detalhe interessante são as variantes textuais com os nomes Nínive, Finéias e Amenofis aplicados ao rico, que se não forem de origem egípcia, ao menos eram utilizados na região do Nilo entre os séculos XVI a XII a.C

Lucas pode ter adaptado esta parábola porque deveria ser já bem conhecida e harmonizava com o que Jesus dizia:

"E dizia também ao que o tinha convidado: Quando deres um jantar, ou uma ceia, não chames os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem vizinhos ricos, para que não suceda que também eles te tornem a convidar, e te seja isso recompensado. Mas, quando fizeres convite, chama os pobres, aleijados, mancos e cegos, E serás bem-aventurado; porque eles não têm com que to recompensar; mas recompensado te será na ressurreição dos justos"
Lucas 14:12-14

"Mas ai de vós, ricos! porque já tendes a vossa consolação. Ai de vós, os que estais fartos, porque tereis fome. Ai de vós, os que agora rides, porque vos lamentareis e chorareis"
Lucas 6:24,25

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...